Gosto de ficar sozinho às vezes. Geralmente penso em muita coisa nessas horas. Ontem li uma frase muito boa sobre isso: "Odeio quem me rouba a solidão sem em troca me oferecer verdadeiramente companhia." E pensei nela enquanto caminhava até o metrô nessa manhã, depois de uma longa e boa conversa com uma amiga. Aliás, as reflexões que faço nesse trajeto depois dessas nossas conversas são quase sempre tão boas quanto as próprias conversas.
Eis que pensando no desdobrar do livro adentro o vagão do metrô e me deparo com um sujeito lendo um livro que gostei muito. Imediatamente me lembrei da última frase do livro. E isso é raro, hein? Acho mesmo que é um dos finais mais legais que li. E como se dissesse qual o livro não poderia citar o final, prefiro o contrário:
"Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas defora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco."
Sensacional! E olha que li isso há pelo menos cinco anos... Então comecei a pensar em como essa passagem me marcou e concluí que ela mostra a que grau de degradação pode chegar um porco...
Pois bem. Pensando em como o ser humano se mostra escroto em determinada situação me lembrei de imediato do Ensaio Sobre a Cegueira, do José Saramago, que mostra bem isso... Preciso ver o filme feito pelo Fernando Meirelles com urgência... mas isso é outra história.
Cito aqui o Ensaio porque é o livro que tem dos melhores começos que já li. A idéia era reproduzir aqui o primeiro páragrafo, mas como se trata de Saramago e sua particular pontuação e articulação, vai o trecho:
O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automóveis da frente aceleraram antes que o sinal vermelho aparecesse. Na passadeira de peões surgiu o desenho do homem verde. A gente que esperava começou a atravessar a rua pisando as faixas brancas pintadas na capa negra do asfalto, não há nada que menos se pareça com uma zebra, porém assim lhe chamam. Os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros,avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os peões já acabaram de passar, mas o sinal de caminho livre para os carros vai tardar ainda alguns segundos, há quem sustente que esta demora, aparentemente tão insignificante, se a multiplicarmos pelos milhares de semáforos existentes na cidade e pelas mudanças sucessivas das três cores de cada um, é uma das causas mais consideráveis dos engorgitamentos da circulação automóvel, ou engarrafamentos, se quisermos usar o termo corrente.
O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecânico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixade velocidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha do circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o transito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim,conseguir abrir uma porta, Estou cego.
É fantástico! Recomendo essa leitura. E como pensei num livro com final DU CARALHO e em outro com começo SENSACIONAL, acabei me lembrando do Machado e entendi finalmente a grandiosidade do homem!
A lembrança não foi à toa. Por ocasião do centenário da morte do escritor tenho lido muito sobre Machado. Aliás, li mais SOBRE o Machado do que li O Machado e definitivamente isso não é um bom sinal...
Um cara que abre uma obra com isso:
Ao verme
Que
Primeiro roeu as frias carnes
Do meu cadáver
Dedico
Como saudosa lembrança
Estas
Memórias Póstumas
E encerra com
Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
Dispensa comentários, né não?
P.S.: O amigo Valmyr também já citou como abertura predileta a da obra "Memórias Póstumas de Braz Cubas"
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