quinta-feira, dezembro 11, 2008

Capitu (rado)


Tenho acompanhado a microssérie Capitu que a TV Globo exibe nessa semana. Sou fascinado pela criação de Machado de Assis. E entenda criação não como a obra - certamente fascinante, mas da qual conheço muito menos do que gostaria. Falo de Capitu mesmo. Criatura dissimulada e oblíqua. Menina de olhos de ressaca. Dom Casmurro foi meu primeiro contato com o autor. Foi-me, de fato, empurrado goela abaixo por uma professora do ginásio. E, ao contrário do que dizem, isso não tirou da obra o encanto. O começo foi difícil. Mas quando o autor é bom ele arrebata até o mais preguiçoso dos leitores.

Me lembro que ficava extasiado com as descrições da tal menina e me identificava mesmo com a paixão adolescente do Bentinho. Fui gostando cada vez mais e quando me dei conta devorava o livro, em busca de saber a sina do personagem-narrador e suas desventuras no amor e na amizade. Depois de adulto reli o livro. Gostei ainda mais. Dessa vez, me prendeu o estilo do grande escritor. Sem as identificações juvenis, pude notar que o velho Machado é mesmo um mestre na escolha das palavras e entendia da alma humana com poucos pscicólogos são capazes.

Dito isso, vamos à série. Simplesmente S E N S A C I O N A L. A montagem, o figurino, a fotografia. Tudo, digno dos melhores elogios. O diretor Luis Fernando Carvalho, de Lavoura Arcaica, e responsável pelos melhores seriados produzidos na Globo nos últimos tempos - Hoje é dia de Maria e A pedra do reino - acertou a mão em tudo. Absolutamente tudo.

Os recursos de montagem, com cenário único, que parece mesmo ser uma lembrança vaga e perdida no tempo, fazem o telespectador mergulhar na história. O diretor foi muito feliz ao optar por deixar as palavras de Dom Casmurro exatamente como na obra. Assistir aos dois primeiros capítulos foi como reler o livro. Cada palavra escolhida pelo maior escritor brasileiro foi preservada de maneira inteligente. Por melhor que fosse a adaptação, Luis Fernando Carvalho fez a melhor opção que poderia ter feito e deixou em Dom Casmurro o que a obra tem de absolutamente genial: o texto de Machado.

Mas a série vai além do texto. A escolha do elenco, por exemplo, é outro trunfo. Apostando em atores pouco conhecidos, o diretor brinda o expectador com um Dom Casmurro genialmente machadiano. Ponto alto. O ator Michel Malamed - prazer em conhecê-lo - dá ao personagem -narrador a carga ideal de humor, amargura e fragilidade.

O importante personagem do Agregado José Dias, na pele de outro - pra mim, completamente - desconhecido, o ator Antonio Karnewale, é outro destaque. Também dissimulado. Calculista e interesseiro. É a exata personalidade (descrita?) elaborada por Machado. O jovem Bentinho e seus familiares são também muitíssimo bem interpretados.

A menina Capitu é mesmo um Capitu (lo) à parte. Não poderia haver escolha mais acertada. Letícia Persiles é a verdadeira encarnação de Capitu. Me lembro de ter lido uma vez - talvez escrito pelo próprio Machado - que o romance não deveria ter o nome de Dom Casmurro e sim de Capitu. Pois a microssérie faz essa justiça e Letícia a atesta com graça e competência. Basta assistir a qualquer trecho com a menina pra ter essa certeza. Ela rouba a cena. Sem muito esforço. Nasceu com olhos de ressaca e faz o ar dissimulado como a Capitu de minha mente fazia durante a leitura da obra.


A direção acerta também no tempero pop que deu à obra. Li que o diretor quis assim para que os jovens entendessem que Machado não é chato nem sisudo. O motivo é até nobre, mas o resultado - que de fato é o que importa - pra mim foi sensacional.

Esse tempero, além de estar na maquiagem, no figurino e na tatuagem de Capitu, aparece na trilha sonora. Perfeita.

Quem estava à frente da TV esperando pela primeira imagem da adaptação certamente se surpreendeu com as imagens envelhecidas e as guitarras distorcidas de Jimi Hendrix. Uma maneira peculiar - e muito eficiente - de transportar o telespectoador para as angústias e amarguras do narrados Dom Casmurro prestes a entrar em cena.

Outra bem escolhida na trilha é Elephant Gun, do combo Beirut, que faz pano de fundo para a as aparições de Capitu. Falando, é difícil entender porque escolher a música de um americano, Zach Condon, e sua trupe que mistura folk e música do leste europeu, para cenas de amor juvenil entre a estrela da microssérie e o (ainda) angelical Bentinho. Se quiser, entra aqui ó http://bluesmen-worldmusic.blogspot.com/2008/10/beirut-lon-gisland-ep.html , baixe o CD e ouça. Você vai entender perfeitamente.

E por falar em entrar, o site de Capitu também é bem legal. Olha aqui ó http://capitu.globo.com/Capitu/0,38826,16142,00.html Dá pra ver algumas cenas, como o beijo de Capitu e Bentinho. Muitíssimo bem-feita e como já dito, não poderia descrever de melhor maneira o tal beijo citado no livro. Incrivelmente fiel a imaginação do leitor...

Façamos assim. Você lê isso:

Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me
definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e disse-lhe,—para dizer alguma cousa,— que era capaz de os pentear, se quisesse.
—Você?
—Eu mesmo.
—Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.
—Se embaraçar, você desembaraça depois.
—Vamos ver.
E Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhando. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que ela era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.
—Senta aqui, é melhor.
Sentou-se. "Vamos ver o grande cabeleireiro", disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tacto aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos
dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa, digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs. Enfim acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as
pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra, alargando aqui, achatando ali, até que exclamei:
—Pronto!
—Estará bom?
—Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.
—Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...
Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso. atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos.

E agora assista a isso aqui:




De quebra, você também pode entrar aqui ó http://profile.myspace.com/index.cfm?fuseaction=user.viewprofile&friendID=75215058 e descobrir onde o diretor encontrou a intérprete de Capitu.

Letícia é vocalista da banda baiana Manacá, que faz um som entre Cordel do Fogo Encantado e Mars Volta - assim está descrito no release do myspace, que mais parece um texto deTom Zé. Olha lá...


É isso. Vi só dois capítulos de Capitu e estou encantado. Com tudo. Inclusive com ela. Os personagens ainda vão entrar na fase adulta e a história está só começando, mas tenho certeza que o bruxo do Cosme Velho está muito feliz com essa interpretação de sua obra.

Mais do que digna para a homenagem em seu centenário de morte - nunca vou entender essa coisa de efeméride de morte, mas...

O ano oficial Machado de Assis, decretado por lei, tem, pelo menos na TV, um encerramento à altura da obra do escritor.

P.S.: O Dom Casmurro, da microssérie era a minha opção de ilustração, mas o olhos de ressaca definitivamente me capitu (raram)...

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